segunda-feira, maio 22

Farra x ética


(entrevista Delamar Volpato*)

Blog: Admitindo a farra-do-boi como um problema cultural, a sua proibição está baseada em uma determinada moral que não admite essa prática, ou em uma obrigação ética de condená-la?

Delamar: A cultura de um povo é o critério último do que é correto ou não? Por esse critério, você teria que aceitar por exemplo, a desigualdade entre homens e mulheres no islamismo, porque é cultural, ou teria que aceitar determinada cultura, inclusive, hipoteticamente, sacrifícios de crianças, porque isso algum dia aconteceu.

Então a cultura tem uma dimensão importante, mas não deve ser o critério último, portanto deveria se ter uma espécie de crítica da cultura. Essa tarefa não é fácil, porque não se sabe de conseguimos sair de uma cultura para se chegar num tipo de posição universal.

O discurso dos Direitos Humanos, que se pretende ser universal, talvez ele também seja o reflexo de uma cultura (européia, ocidental). Mas a filosofia tem essa pretensão de construir uma fundamentação dos juízos morais, que pudesse ser aceita por todos. E o discurso dos direitos humanos é baseado um pouco nessa idéia.

Então o caso da farra-do-boi é saber se os animais são, não propriamente portadores dos nossos direitos, mas se são objetos dos nossos direitos, porque é difícil falar que os animais têm direitos, porque não têm a faculdade de assumir deveres.

Podemos perguntar se eles são objetos dos nossos deveres, porque os nossos deveres se aplicam a vários objetos, se aplicam a nós próprios. Por exemplo, nós devemos não nos mutilarmos. Você pode pensar que tem o dever de não matar outro ser humano, de preservar o meio ambiente, de não matar animais, de não fazê-los sofrer.

Porque os que defendem a farra-do-boi detectam uma espécie de hipocrisia na posição dos que são contra, pois estes acham normal comer churrasco no final de semana, mas acham absurdo que se corra atrás do boi durante a semana santa.

Na verdade, tem o princípio de hermenêutica que se você permite o mais, deveria permitir o menos. Então se você permite que se mate, que é o mais, então deveria permitir o sofrer, que seria menos. É uma questão problemática. Por essa questão de fundo que hoje se discute bastante.

Blog: É, então, uma questão ética?

Delamar: Se você for considerar a literatura, está se tornando uma questão ética. São questões que a sociedade considera relevantes. Por exemplo, o uso de energia nuclear há 50 anos. Depois que surgiu, essa tecnologia se tornou um problema, da mesma forma que transplante de órgãos, eutanásia.

É o âmbito da ação humana - um dos objetos da ética. Na verdade, os costumes são as ações humanas, e algumas você considera moralmente relevantes e outras não.

Blog: Pode-se afirmar que o indivíduo se vale mais dos costumes para guiar suas ações rotineiras?

Delamar: Por exemplo, as sociedades do litoral de Florianópolis aceitam a farra do boi por ser uma moral vigente para eles. As pessoas agem segundo os costumes que elas herdaram, que prevalecem na sociedade em geral.

Blog: Isso quer dizer que os valores éticos não estão cristalizados?

Delamar: Nesse sentido há um déficit entre aquilo que as teorias éticas estabelecem e aquilo que se efetiva. Você tem que observar se é um déficit motivacional, que as pessoas não se motivam a agir daquele modo, tendo bons motivos que não a moral.

Haveria um déficit de eficácia - a moral no sentido formal não dispõe de meios coativos para se impor. E é justamente nesse ponto que a moral faz ligação com o direito. Por exemplo, um movimento social muitas vezes começa como um movimento ético ou moral, e o objetivo dele é transformar aquela conduta pretendida numa norma jurídica, porque daí ela vai se tornar coativa.

Mas justamente quando ela se torna norma moral, ela também perde aquela dimensão de movimento efetivo na sociedade, e se terá mais uma lei que vai ser cobrada juridicamente ou não.

O direito é mais eficiente hoje em dia do que a moral. Pois a moral é muito mais do dever ser do que âmbito daquilo que é eficaz. E é difícil mudar costumes estabelecidos, arraigados na sociedade. É difícil não só porque aquilo já é o modo de vida da própria pessoa, como as teorias morais não prestam uma segurança completa sobre quais normas seriam corretas e quais seriam equivocadas.

* Chefe do Departamento de Filosofia da UFSC
*
Imagem: Neri Andrade, "Farra-do-boi"

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